Introdução
Registro, documentação ou necessidade de expressão, sacra ou profana, o fato é que a incisão ou gravado sobre superfícies rijas está presente desde que se conhece a história do homem. É de se supor que o esforço de apropriação e revelação de seu universo, milhares de anos antes da invenção do papel e da imprensa, tenha levado o homem a uma forma de registro. Possivelmente esta intenção aliada ao gesto de gravar impregnou de características específicas aquilo que iria estruturar uma "linguagem" bem distinta da do desenho, da pintura, da escultura, da fotografia e do cinema.
A troca, a comunicação e a divulgação no momento em que o homem se organiza socialmente, e especificamente com o advento dos primeiros núcleos urbanos, criaram a necessidade de encontrar um meio de multiplicação não só de texto como também de imagens. As implicações culturais e sociais que daí advieram são indiscutíveis.
A multiplicação de um original - a partir de uma matriz geradora veio romper a tradição valorativa da peça única, provocando uma renovação que iria afetar, inclusive o conceito e as avaliações estéticas. O valor de uma obra que aumenta ou diminui pelo fato de estar limitada a um possuidor privilegiado é quando muito, posta em questão. Esse valor na obra de multiplicação aumenta na medida do seu desdobramento, uma vez que patrocina a possibilidade de um convívio sem barreiras geográficas, sociais e culturais, com imagens, conceitos permanentemente transformadores da realidade. Assim a gravura vem expressar os anseios dos homens, sociais e culturalmente distanciados e diferenciados, consignados deste modo o seu alto sentido democrático.
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Inácio Rodrigues
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A0059
Inácio Rodrigues não fez outra coisa na vida a não ser pintar, desenhar e gravar. Autodidata, começou a se interessar por arte quando contava apenas onze anos, no seu estado natal, Ceará. Com exceção de fase figurativa, onde alguns reflexos atávicos podiam ligá-lo origem nordestina, em toda sua obra posterior perpassa sutil refinamento plástico aliado à impecável realização. Por todas essas qualidades, a pintura de Inácio Rodrigues sempre mereceu as melhores referências da crítica especializada que, entre 1969 e 1990, concedeu-lhe mais de vinte premiações em importantes salões e bienais nacionais. Entre elas, é justo que se destaquem o prêmio de Viagem à Espanha, patrocinado pelo Clube Espanhol do Rio de Janeiro, 1973, e o Prêmio de viagem ao País, do Salão Nacional de Arte Moderna-Mec, 1975 O percurso artístico do pintor cearense foi inverso ao da maioria dos seus conterrâneos. Em 1961 ao invés de rumar para o Rio ou São Paulo,a meta de artistas que anseiam novas perspectivas de trabalho, ele pôs os pés na estrada, seguiu para a Amazônia e, depois, para países limítrofes àquela região, sempre pintando e desenhando. Em Porto Velho, Rondônia, decorou e pintou a cúpula da catedral e, seguindo adiante, expôs em Georgetown, Caiena, Iquito, Lima e La Paz,dentre outras cidades. Na capital boliviana chegou a participar do Salão de Belas Artes, em 1964
Os cinco anos de andanças pela América Latina, além das aventuras romântica e idealista. típicas dos anos 60, proporcionaram-lhe certamente valiosos subsídios para a sua formação artística e visão abrangente das possibilidades da arte nesta parte do continente americano. Assim, ao chega finalmente ao Rio, em 1966, estava apto para enfrentar o desafio maior: vencer num meio culturalmente evoluído.
Não foi luta fácil. Os anos 60 talvez tenham sido dos mais agitados para as artes plásticas brasileiras, mormente no âmbito do Rio de Janeiro, borbulhando em torno de novas linguagens desenvolvidas por uma talentosa geração que se concentrava sobretudo no Museu de Arte Moderna. Foi época de propostas contestatórias e de ideais vanguardistas que encontravam ressonâncias também na Escola de Belas Artes, onde Inácio Rodrigues como ouvinte, pôde aprimorar seus conhecimentos autodidatas- ao mesmo tempo, ele entrava em contato com artistas,igualmente talentosos, todos imbuídos da discussão da arte num período politicamente delicado para o país e que perduraria por quase trinta anos. A princípio, a pintura de Inácio Rodrigues foi figurativa. Uma iconografia humana, de rostos angustiados, de forte conteúdo dramático, caracterizava esse trabalho. O pintor, porém, com, talento. transcendia qualquer concessão ao espectador, tornando ainda mais pungente o drama de cada um deles, isolando-os por cortes geométricos, como se os marginalizasse da sociedade. Denominando a fase’’Os Encarcerados’’, o pintor obviamente aludia ao grave momento político nacional, ao qual nenhum artista poderia permanecer indiferente. Alguns críticos viram nessa figuração uma reflexão do pintor sobre o homem do Nordeste, ligando a sua origem às raízes atávicas.
A partir de 1971, Inácio Rodrigues reformula a pintura e surpreende com a nova fase tendo a paisagem cósmica como enfoque principal. Exposta pela primeira vez neste mesmo ano em Belo Horizonte, Rio, Fortaleza e Juiz de Fora, essa pintura tinha muito a ver com as expectativas do mundo quanto à corrida espacial das grandes nações, e que culminara com a chegada do primeiro homem à lua, em julho de 1969. Inácio,que recebera o impacto do filme de Stanley Kubrick “2001- Uma Odisséia no Espaço”, mergulhava por inteiro na aventura do espaço. As cores chapadas das telas, às vezes ousadas,integravam-se aos motivos espaciais e. principalmente, aos estranhos e fascinantes pequenos objetos metálicos que cortam poéticos horizontes. Mais uma vez o pintor valoriza os cortes geométricos no espaço da tela e, com isso, acentua o mistério implícito em cada uma das máquinas que povoam o seu universo ficcional.
O crítico Roberto Pontual, num comentário datado de 1972, observa que o recurso da divisão geométrica utilizado pelo artista tinha a finalidade de “registrar agora os extremos do micro e do macro que compõem, integrados, a vida, a realidade, a transcendência. Micro e macro, quando os céus são cruzados por espermatozóides ao mesmo tempo astronaves: espermonautas”.
Ainda na década de 1970, Inácio Rodrigues encontra-se com a natureza e dela faz o motivo de sua pintura. Não era um encontro fortuito. Vinha desde os tempos de criança, passados numa região paradisíaca do Ceará, Jericoacoara, considerado pelos ambientalistas um paraíso ecológico. O próprio artista reconhece que, de uma maneira ou de outra, a paisagem marcou o seu trabalho, no qual capta não somente a beleza da natureza mas, igualmente seus problemas, sua devastação.”Quando vivia no Rio, o meu trabalho tinha como tema “os encarcerados” e nele já estava presente a preocupação social, dando origem a uma paisagem metafísica na transfiguração da paisagem carioca’’, diz ele.
Sensível como todo artista, Inácio estende seu trabalho criativo a outras linguagens, como a litogravura e o desenho. Ao mesmo tempo em que permanece fiel aos grandes espaço da tela, ocupados por paisagens imaginárias de plástica beleza, suave e envolvente, ele é consciente do seu dever perante a sociedade onde vive. Hoje, morando em Atibaia, nos arredores de São Paulo convive com o panorama deslumbrante da Pedra Grande e da Serra de Itapetinga.
“Independente de onde esteja morando, minha preocupação ecológica é constante e vital para mim’’, acentua o artista,uma das vocações mais evidentes da pintura contemporânea brasileira.
Texto 'Os Espaços Iluminados da Natureza' de Geraldo Edson de Andrade
Nascimento
1946 - Acaraú CE
Formação
ca.1957 - Acaraú CE - Inicia-se em pintura como autodidata
Cronologia
Pintor, desenhista, entalhador, gravador
1960/1965 - América Latina - Viaja com frequência para diversos países latino-americanos com o objetivo de participar de exposições
1962 e 1965 - Porto Velho RO - Pinta a cúpula da Catedral Municipal e o Hotel Porto Velho
Críticas
'A princípio muito diversificada, sua pintura começa a fixar alguns temas por volta de 1967. Partindo do retrato individual, já corroído por amargura talvez atávica, restos de origem e infância no Nordeste, chegou então a registrar as prisões contemporâneas do homem-multidão- as grades, com figuras por detrás delas, tornaram-se naquele momento a marca reverberadora em todo o seu trabalho. Mais tarde, a figura humana começou a ceder lugar à paisagem, que já estava presente, como área de detalhe, em algumas de suas últimas pinturas e desenhos da fase de dor, violência e agressão. A própria figuração explícita, de períodos precedentes, foi se deslocando pouco a pouco para o campo da pura analogia, em formas que nos remetiam sobretudo a Yves Tanguy. Nessas áreas abrindo geométricas janelas para a paisagem global tripartida (o subsolo, o solo e o sobre-solo), Inácio quer registrar agora os extremos do micro e do macro que compõem, integrados, a vida, a realidade e a transcendência. Micro e macro quando os céus são cruzados por espermatozóides ao mesmo tempo astronaves: espermonautas'.
Roberto Pontual
PONTUAL, Roberto. Arte/Brasil/hoje: 50 anos depois. São Paulo: Collectio, 1973.
'Impressionava na pintura de Inácio, desde a primeira fase, o forte atavismo latente. Nenhum indício da região nordestina no conteúdo, pois, formalmente, seu trabalho aproximava-se da figuração expressionista, muitos anos antes, portanto, de virar modismo entre os artistas da atual geração. Era o momento político brasileiro, de negras lembranças, que o artista procurava captar, na série denominada 'Os Encarcerados': dramáticas figuras, de olhos perplexos, interrogavam o espectador, valorizadas por enquadramentos geométricos. (...) Da figuração chegou às paisagens, a princípio fascinado pelo espaço cósmico, que discutia plasticamente pelos planos geometricamente demarcados- depois, enveredando-se natureza adentro, cuja poluição denunciava, mas que lhe proporcionava expandir-se na cor chapada. Tudo sob impecável e primorosa execução, que é o que mais caracteriza o seu trabalho. Pintor de linguagem pessoal , Inácio cada vez mais despojava sua pintura no sentido de sintetizá-la como proposta, fiel todavia à noção dos espaços e do desenho, sem esquecer o colorido, não fosse ele um dos nossos bons coloristas. (...)'
Geraldo Edson de Andrade
INÁCIO Rodrigues: ecos. Apresentação de Geraldo Edson de Andrade. São Paulo: Chroma Galeria de Arte, 1988.