Introdução
Registro, documentação ou necessidade de expressão, sacra ou profana, o fato é que a incisão ou gravado sobre superfícies rijas está presente desde que se conhece a história do homem. É de se supor que o esforço de apropriação e revelação de seu universo, milhares de anos antes da invenção do papel e da imprensa, tenha levado o homem a uma forma de registro. Possivelmente esta intenção aliada ao gesto de gravar impregnou de características específicas aquilo que iria estruturar uma "linguagem" bem distinta da do desenho, da pintura, da escultura, da fotografia e do cinema.
A troca, a comunicação e a divulgação no momento em que o homem se organiza socialmente, e especificamente com o advento dos primeiros núcleos urbanos, criaram a necessidade de encontrar um meio de multiplicação não só de texto como também de imagens. As implicações culturais e sociais que daí advieram são indiscutíveis.
A multiplicação de um original - a partir de uma matriz geradora veio romper a tradição valorativa da peça única, provocando uma renovação que iria afetar, inclusive o conceito e as avaliações estéticas. O valor de uma obra que aumenta ou diminui pelo fato de estar limitada a um possuidor privilegiado é quando muito, posta em questão. Esse valor na obra de multiplicação aumenta na medida do seu desdobramento, uma vez que patrocina a possibilidade de um convívio sem barreiras geográficas, sociais e culturais, com imagens, conceitos permanentemente transformadores da realidade. Assim a gravura vem expressar os anseios dos homens, sociais e culturalmente distanciados e diferenciados, consignados deste modo o seu alto sentido democrático.
Voltar
Fernando Lemos
Voltar
A0168
José Fernandes de Lemos (Lisboa, Portugal 1926). Designer gráfico, fotógrafo, desenhista, pintor, tecelão, gravador, muralista e poeta. Após cursar a Escola de Artes Decorativas Antonio Arroio, entre 1938 e 1943, estuda pintura na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa. Dedica-se mais intensamente à fotografia no início da década de 1950. Registra imagens de intelectuais e artistas ligados ao movimento surrealista e também imagens cotidianas, transformadas por efeitos de luz. Atua como desenhista em litografias industriais e colabora com poemas e ilustrações na revista Uni/Pentacórnio. Viaja para o Brasil e fixa-se em São Paulo em 1953. Passa a trabalhar com desenho e pintura, apresentando uma produção não figurativa. Leciona artes gráficas na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo - FAU/USP. Entre 1968 e 1970, ocupa a presidência da Associação Brasileira de Desenho Industrial - ABDI, da qual é membro fundador. Como escritor e ilustrador, integra a redação do jornal Portugal Democrático, órgão dos exilados políticos portugueses no Brasil, entre 1955 e 1975. Em 2003, é publicado o livro Na Casca do Ovo, o Princípio do Desenho Industrial, com seus escritos sobre design, pela editora Rosari.
Comentário Crítico
Fernando Lemos atua como fotógrafo em Portugal, no início da década de 1950, e participa de um ambiente intelectual de resistência à ditadura salazarista. Sua produção tem caráter experimental, de inspiração surrealista e aproxima-se da obra de Man Ray (1890 - 1976).
Vem para o Brasil e reside por algum tempo na Pensão Mauá, no Rio de Janeiro, onde fotografa escritores e artistas. Em 1953, parte de suas fotografias é exposta no Museu de Arte Moderna de São Paulo - MAM/SP e no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro - MAM/RJ. Sua produção aproxima-se daquela dos modernos fotógrafos brasileiros atuantes desde o fim da década de 1940, ligados ao Foto Cine Clube Bandeirante.
Fernando Lemos emprega constantemente processos de construção e ordenamento do espaço, como em Luz Teimosa, 1951/1952, na qual a luminosidade se revela em linhas que cortam de forma sutil um ambiente fechado. O curto período em que se dedica mais intensamente à fotografia encerra-se logo após sua transferência para o Brasil. Depois, passa a trabalhar com desenho e pintura, e tem uma produção não-figurativa, utilizando inicialmente nas composições formas recortadas do plano de fundo, que muitas vezes se aproximam de signos gráficos, em composições estruturadas principalmente pela linha, como em Símbolos, 1967. Em outros trabalhos, emprega a geometria de maneira expressiva e, posteriormente, passa a criar formas orgânicas que também evocam símbolos. Explora, ainda, a luminosidade da aquarela.
Lemos atua também nas áreas de comunicação visual e planejamento gráfico, e como ilustrador de várias publicações. Dirige, com Décio Pignatari (1927), o estúdio de criação Maitiry, em São Paulo. Sua produção como designer permanece pouco conhecida.
Nascimento
1926 - Lisboa (Portugal) - 3 de maio. Naturaliza-se brasileiro em ca.1960
Formação
s.d. - Lisboa (Portugal) - Cursa pintura e litografia na Escola de Artes Decorativas Antonio Arroio
s.d. - Lisboa (Portugal) - Cursa pintura na Sociedade Nacional de Belas Artes
1962 - Japão - Bolsista da Fundação Calouste Gulbenkian, freqüenta estúdios de calígrafos
1975 - Lisboa (Portugal) - Bolsista da Fundação Calouste Gulbenkian para projetos de intercâmbio entre Portugal e Brasil
Cronologia
Pintor, desenhista, tecelão, designer gráfico, fotógrafo, gravador, muralista e poeta
s.d. - São Paulo SP - Realiza murais de pintura para o Clube Paineiras do Morumbi, Cine Regina, Restaurante da Refinaria União, Sede da Cia. Porto Seguro, Sede do Plancap, Terminal Jabaquara do Metrô e outros
1951 - Espanha e França - Viaja a estudos
1955 - Portugal, Suíça, Holanda e França - Recebe prêmio viagem ao exterior da Fundação Bienal de São Paulo
1955/1975 - São Paulo SP - Faz parte da redação do jornal Portugal Democrático, órgão dos exilados políticos no Brasil
1957 - Nova York (Estados Unidos) - Decoração do stand da Bahia no pavilhão do Brasil no World Trade Fair
1957 - São Paulo SP - Participa do conselho artístico do Museu de Arte Moderna de São Paulo - MAM/SP
1962 - Japão - Viaja a estudos
1963 - Hong Kong, Tailândia, Índia, Grécia, Egito, Itália e França - Viaja a estudos
1963 - São Paulo SP - Prêmios melhor capa e apresentação gráfica com o livro infantilTelevisão da Bicharada, na 2ª Bienal Internacional de Gravura
1963 - Tóquio (Japão) - Decoração do pavilhão do Brasil na 5ª Feira Internacional de Tóquio
1963/1964 - São Paulo SP - Auxiliar de ensino na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo - FAU/USP
1965 - São Paulo SP - Participa do júri da 8ª Bienal Internacional de São Paulo, na Fundação Bienal
1965 - São Paulo SP - Participa da montagem da 5ª Bienal Internacional de São Paulo, na MAM/SP
1968/1970 - São Paulo SP - Participa da fundação e preside a Associação Brasileira de Desenho Industrial - ABDI
1968/1970 - São Paulo SP - Supervisor da assessoria técnica da Divisão de Pesquisas do Centro Cultural São Paulo - CCSP
1969 - São Paulo SP - Compõe o júri da 10ª Bienal Internacional de São Paulo, na Fundação Bienal
1969/1973 - Diretor de fotografia do longa-metragem Compasso de Espera junto com Jorge Bodansky, com direção de Antunes Filho
1975/1979 - São Paulo SP - Trabalha como assessor gráfico da Galeria Arte Global
1975/1982 - São Paulo SP - Membro do Conselho Artístico da Pinacoteca do Estado de São Paulo - Pesp
1975/1983 - São Paulo SP - Assistente técnico de direção do Departamento de Informação e Documentação Artísticas - Idart
1983 - São Paulo SP - É diretor do CCSP e Assessor de Artes Plásticas da Secretaria Municipal de Cultura
1985 - Lisboa (Portugal) - Lançamento do livro Cá & Lá Poesia, na Imprensa Nacional
1985 - São Paulo SP - Atua como editor de arte do Departamento de Patrimônio Histórico da Eletropaulo
1986 - São Paulo SP - Lançamento do livro Cá & Lá Poesia, na Livraria Paisagem
1987/ca.1990 - São Paulo SP - Programador visual do projeto de construção do Memorial da América Latina do arquiteto Oscar Niemeyer (1907)
2001 - Porto (Portugal) - Prêmio Anual de Fotografia, concedido pelo Centro Português de Fotografia
2003 - É publicado o livro Na casca do ovo, o princípio do desenho industrial, com seus escritos sobre design, pela editora Rosari
Críticas
'O traço inicial do pintor Fernando Lemos é apresentar-se intelectual em meio à massa de artistas que não o são (e o é realmente na prática como poeta e escritor) (...) A passagem da proposição ao ritmo se faz pela linha que não é, no entanto, animada por uma força interna capaz de se renovar em curso, num rumo indeterminado, ou mesmo numa curva com um destino. (...) No fundo, na pintura de Lemos, ela é sobretudo forma antes de ser linha. (...) A trama pictórica caracteriza-se por um esquema de cores que se aproximam e que, pela superposição de formas e marcas, viram áreas tonalizadas, frequentemente numa escala fria, ou áreas definidas pelo contraste de tons quentes, entre os cruzamentos de formas, abrem-se intervalos de tela não atingidos pelo pincel e sobre os quais se volta a atenção do pintor que os deixa em branco ou os reforça como pontos luminosos, como signos'.
Mário Pedrosa
CAVALCANTI, Carlos- AYALA, Walmir, org. Dicionário brasileiro de artistas plásticos. Apresentação de Maria Alice Barroso. Brasília: MEC/INL, 1973-1980. (Dicionários especializados, 5).
'Há exatamente cinqüenta anos, Fernando Lemos participou de sua primeira exposição em Lisboa, onde nasceu- pouco depois, emigrou para o Brasil, em virtude de sua firme oposição à ditadura salazarista. (...) Com tempo de trabalho, é inevitável que existam, dentro de sua produção, alguns Fernandos diferentes, tanto no que se refere às técnicas variadas que domina e utiliza - é desenhista, pintor, fotógrafo, programador visual e eventualmente poeta - quanto às mudanças estilísticas. Os mais maduros certamente se lembrarão de sua linguagem nos anos 50, quando participou das Bienais de São Paulo, desde a segunda, recebendo na quarta o prêmio de Melhor Desenhista Nacional (...). Já para minha geração - a que hoje mais freqüenta galerias - ela nada (ou quase nada) tem do artista que conhecemos nos anos 70, um abstracionista geométrico não ortodoxo, nem herdeiro nem epígono do concretismo, mas organizadíssimo e preciso- Aracy Amaral chegou a falar de seu 'rigor'. É, pois, quase desconcertante encontrar uma pintura que nem mesmo pode considerar-se abstrata - pois namora visivelmente com a figura aqui e acolá e explicita -, e finca suas raízes na fantasia e no lirismo. Mas desconcertante só quer dizer desconcertante- não é um juízo de valor qualitativo. A surpresa acaba, pelo contrário, sendo positiva, pois revela de saída a abertura do leque de interesses e possibilidades expressivas de um artista maduro, mas sempre disposto a arriscar-se. A uma observação mais atenta, revela também sua coerência, quem sabe uma trajetória circular, um ponto de chegada que se liga ao de partida. Nas pinturas e aquarelas dos últimos cinco anos ressurgem formas orgânicas que parecem Ter-se desenvolvido com a liberdade e força das coisas naturais, assim como um tipo de construção, de composição no espaço, que tem muito a ver com a obra dos anos 50 (...) Por sua vez o próprio lirismo constitui outro elemento integrador. Mesmo a geometria organizada dos anos 70 nunca deixou de ser, em Fernando Lemos, de natureza intuitiva e afetiva e de propósito expressivo, não meramente formalista'.
Olívio Tavares de Araújo
LEMOS, Fernando. Telas e aquarelas. Apresentação Olívio Tavares de Araújo. São Paulo : Múltipla de Arte, 2000. [p. 3].
'Das fotografias de Fernando Lemos, poder-se-á dizer, em primeira análise que estão próximas de uma certa estética surrealista. Mas será isto o suficiente para nos esclarecer? Na verdade, quando Fernando Lemos fez suas fotografias, entre 1949 e 1951, já o grande período criador do surrealismo tinha passado há muito. Lemos não esta entre os seus epígonos tardios. Mais do que uma filiação formal, trata-se sem dúvida duma conjunção de intenções profundas, ou se se preferir, de fragmentos de territórios comuns. Um destes territórios encontrar-se-ia, talvez, naquilo a que Brassai lindamente chamava 'o perpétuo incógnito da fotografia', o que lhe permite 'penetrar nos fenômenos, desvendar as suas formas'. Por volta de 1950, a história da fotografia escreve-se sobretudo na Alemanha (com a 'fotografia subjectiva'), ou nos EUA (com Minor White ou Harry Callaham, por exemplo), com a preocupação de se desmarcar o pictorialismo, pela afirmação muito modernista duma autonomia da forma fotográfica. É evidente que Fernando Lemos não partia desta preocupação. Não procura afirmar um meio na sua linguagem, mas sobretudo entrar numa zona incerta de fenômenos e sensações, aos quais vai tentar desvendar formas em vez de lhes impor uma regra cuja lógica não depende senão do próprio meio. É com este objetivo que recorre a procedimentos identificados como 'surrealistas' (solarização, sobreposições, impressões em negativo e positivo), cuja função não é construir uma linguagem mas antes abrir caminho às aparições e aos encontros inesperados. É, sem dúvida, também por isso, que se encontram na sua obra elementos que servem para dividir, para esbater a imagem - fragmentação, redes, enquadramentos, tudo o que afasta e fragmenta a imagem, como é freqüente, por exemplo, em Man Ray'.
Regis Durand
DURAND, Redis. Fernando Lemos ou a leveza do signo. In AVILA, María Jesús. Surrealismo em Portugal 1934-1952. Prefácio de E. Cuadrado. Lisboa: Museu do Chiado- Badajoz: Museo Extremeño e Iberoamericano de Arte Contemporáneo, 2001. p. 143.