Introdução
Registro, documentação ou necessidade de expressão, sacra ou profana, o fato é que a incisão ou gravado sobre superfícies rijas está presente desde que se conhece a história do homem. É de se supor que o esforço de apropriação e revelação de seu universo, milhares de anos antes da invenção do papel e da imprensa, tenha levado o homem a uma forma de registro. Possivelmente esta intenção aliada ao gesto de gravar impregnou de características específicas aquilo que iria estruturar uma "linguagem" bem distinta da do desenho, da pintura, da escultura, da fotografia e do cinema.
A troca, a comunicação e a divulgação no momento em que o homem se organiza socialmente, e especificamente com o advento dos primeiros núcleos urbanos, criaram a necessidade de encontrar um meio de multiplicação não só de texto como também de imagens. As implicações culturais e sociais que daí advieram são indiscutíveis.
A multiplicação de um original - a partir de uma matriz geradora veio romper a tradição valorativa da peça única, provocando uma renovação que iria afetar, inclusive o conceito e as avaliações estéticas. O valor de uma obra que aumenta ou diminui pelo fato de estar limitada a um possuidor privilegiado é quando muito, posta em questão. Esse valor na obra de multiplicação aumenta na medida do seu desdobramento, uma vez que patrocina a possibilidade de um convívio sem barreiras geográficas, sociais e culturais, com imagens, conceitos permanentemente transformadores da realidade. Assim a gravura vem expressar os anseios dos homens, sociais e culturalmente distanciados e diferenciados, consignados deste modo o seu alto sentido democrático.
Voltar
Claudio Tozzi
Voltar
A0026
Claudio José Tozzi (São Paulo SP 1944). Pintor. É mestre em arquitetura pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP). Em suas primeiras obras, o artista revela a influência da arte pop, pelo uso de imagens retiradas dos meios de comunicação de massa, como na série de pinturas Bandido da Luz Vermelha (1967), na qual remete à linguagem das histórias em quadrinhos. O artista trabalha com temáticas políticas e urbanas, utilizando com freqüência novas técnicas em seus trabalhos, como aserigrafia. Em 1967, seu painel Guevara Vivo ou Morto, exposto no Salão Nacional de Arte Contemporânea, é destruído a machadadas por um grupo radical de extrema direita, sendo posteriormente restaurado pelo artista. Tozzi viaja a estudos para a Europa em 1969. A partir dessa data, seus trabalhos revelam uma maior preocupação com a elaboração formal e perdem o caráter panfletário que os caracterizava. Começa a desenvolver pesquisas cromáticas na década de 1970. Nos anos 80, sua produção abre-se a novas temáticas figurativas, como é possível observar nas séries dos papagaios e dos coqueirais. Apresenta também a tendência à geometrização das formas. Na realização dos quadros utiliza um rolo de borracha de superfície reticulada, o que agrega novos aspectos às suas obras, como textura e volumetria. Passa a realizar trabalhos abstratos, nos quais explora efeitos luminosos e cromáticos. Cria painéis para espaços públicos de São Paulo, como Zebra, colocado na lateral de um prédio da Praça da República e outros ainda na Estação Sé do Metrô, em 1979, na Estação Barra Funda do Metrô, em 1989, no edifício da Cultura Inglesa, em 1995- e no Rio de Janeiro, na Estação Maracanã do Metrô Rio, em 1998.
Comentário Crítico
Claudio Tozzi inicia a carreira como artista gráfico. Vence o concurso de cartazes para o 11º Salão Paulista de Arte Moderna, ocorrido em 1962. Em 1963, começa o curso de arquitetura, concluído em 1968, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo - FAU/USP. Na época, pinta muito. Em seus trabalhos são encontrados símbolos da sociedade de consumo, que aparecem como imagens ou objetos. Utiliza sinais de trânsito, bandeiras, letreiros, peças publicitárias e histórias em quadrinhos, retira-os de seu contexto e atribui-lhes novos sentidos. É influenciado por Sérgio Ferro (1938), Flávio Império (1935-1985) e Maurício Nogueira Lima (1930-1999), em cujas obras se percebe a convergência entre a cartazística soviética, as vertentes construtivas e o vocabulário pop com finalidade política. Trabalhos como Usa e Abusa (1966) e Paz (1963) são característicos da época.
A partir de 1967, apropria-se de trechos de histórias em quadrinhos e lhes dá sentido crítico, sob a influência do artista norte-americano Roy Lichtenstein (1923-1997), e realiza as telas Até que Enfim (1967) e Bandido da Luz Vermelha (1967). Ao mesmo tempo, faz trabalhos explicitamente engajados, como Guevara Vivo ou Morto (1967) e A Prisão (1968). Alguns deles são mostrados em exposições importantes, como a 9a. Bienal Internacional de São Paulo, em 1967, e coletivas em Londres e Buenos Aires. Em 1969, passa da crítica social para a pesquisa de formas, sobretudo da disposição gráfica e impessoal das figuras. Dessa reflexão, nascem as séries Astronautas, Presilhas e Parafusos. O curador Fábio Magalhães afirma que 'as diversas abordagens do parafuso correspondem a um processo de reflexão sobre as possibilidades gráficas e metafóricas de um mesmo tema'.1 Em 1972, Tozzi realiza o painel Zebra, na praça da República, em São Paulo. Dois anos mais tarde, cria telas com materiais orgânicos, pigmentos e objetos distribuídos regularmente em caixas de acrílico. Algumas das obras são exibidas na mostraCor/Pigmento/Luz, na Galeria Bonfiglioli, em São Paulo, em 1975. No ano seguinte, participa da Bienal de Veneza.
Ainda na década de 1970, cria trabalhos mais conceituais, em que alia a pintura ao uso de palavras, como em Dissociação das Cores (1974) e Colors (1975), e realiza paisagens em que a aplicação reticulada de tinta cria zonas de cor regulares. Em 1979, realiza o mural da estação Sé do metrô, em São Paulo. O trabalho dá origem à série de pinturas Colcha de Retalhos, feitas com padrões diferentes de cor. Na década de 1980, o procedimento gráfico de pintar é utilizado na realização de abstrações geométricas. Em 1989, é publicada uma monografia sobre seu trabalho, com texto de Fábio Magalhães. Dois anos depois, expõe na 21ª Bienal Internacional de São Paulo. Em 1993, apresenta individual no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM/RJ).
Notas
1. MAGALHÃES, Fábio. Obra em construção: 25 anos de trabalho de Claudio Tozzi. Fábio Magalhães. Rio de Janeiro, Revan, 1989. p. 40.
Nascimento
1944 - São Paulo SP - 7 de outubro
Formação
1963/1968 - São Paulo SP - Gradua-se na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo - FAU/USP
Cronologia
Pintor
1972 - São Paulo SP - Realiza o painel Zebra, na lateral de um prédio da Praça da República
1975 - Brasil - Recebe o Prêmio Guarantã de viagem ao exterior da APCA
1979 - São Paulo SP - Executa painel na Estação Sé do Metrô
1981 - Brasil - Filme Claudio Tozzi, de Fernando Campos
1984 - Brasil - Documentário Claudio Tozzi, de Olívio Tavares de Araújo
1989 - São Paulo SP - Executa painel na Estação Barra Funda do Metrô
1993 - São Paulo SP - Realização do vídeo Claudio Tozzi - Encontro com o Artista, pelo Itaú Cultural
1993 - São Paulo SP - Realiza o painel para o programa Metropólis da TV Cultura
1995 - São Paulo SP - Executa painel para o edifício da Cultura Inglesa
1998 - Rio de Janeiro RJ - Realiza painel na Estação Maracanã do Metrô Rio
Críticas
'Como a maioria dos artistas dos anos 60, as criações iniciais de Claudio Tozzi refletem aspectos político-sociais da época. Arte de combate e reflexão, arrancada aos cabeçalhos dos jornais e que se exprimia por histórias em quadrinhos e outros recursos da pop art. Num segundo momento, o contato com o real torna-se mais crítico, menos imediato. Surgem então pesquisas ópticas e séries como a dos parafusos, gravuras e móbiles onde Tozzi alia desenho e pintura aos objetos da era tecnológica'.
Pedro Manuel
ARTE no Brasil. Apresentação de Pietro Maria Bardi e Pedro Manuel. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
'Escolhido o ícone, ou melhor, reduzido este a clichê (antes o Che, depois o parafuso, a zebra, o papagaio, o trópico, o arranha-céu, agora a escada), ele o agiganta e, em seguida, o congela. Estanca o movimento, destrói a narrativa, isola, junta, repete, torce, fragmenta, divide, soma, multiplica os ângulos, traz o primeiro plano, enfim, trata a imagem com a frieza de um industrial, de um designer, persegue uma espécie de arquitetura da imagem. Seu processo de criação é metódico e sistemático: primeiro o desenho no papel vegetal, partindo quase sempre de uma fotografia, depois um projeto, finalmente o quadro. (...) A esta materialidade da cor, a esta imagem congelada, corresponde, também, em Tozzi, os recortes que ele vem introduzindo no próprio suporte. (...) Privilegiando a imagem (sua opacidade) contra o imaginário (a transparência), Tozzi se mostra um rigoroso formalista, distanciando-se da pop (com seu relais sociológico), transitando pelo conceitual até alcançar as tendências construtivas (minimal, suporte-surface)'.
Frederico Morais
CLAUDIO Tozzi. Texto de Frederico Morais. Rio de Janeiro: Galeria GB, 1985.
'Nosso tempo - já se disse - é aquele do qual os deuses já partiram ou ao qual ainda não chegaram. Experiência de abandono e desamparo, a Modernidade se inicia com o advento do Sujeito racional soberano que conhece a natureza e suas leis, buscando por si e para si os princípios de suas certezas no mundo. Conhecer significou, a partir do século XVII, dominar tudo o que escapa às mãos do homem - a contingência na natureza, o acaso na história, a fortuna - temporalidade instável e adversa, no plano da ética e da política - atribuindo-lhes constância, regularidade e ordem pela geometrização do espaço. Emblema fundador desse universo são a esfera, a régua e o compasso. A ciência 'contemplativa' seguiu-se a 'vita activa', metaforizada pelos artefatos que sustentam a construção de um mundo certo em meios a temporalidade incerta. O homem fez-se seu engenheiro, senhor da Natureza e sua própria natureza, ele mesmo ?um império dentro de um império?. Na antítese de um universo auto-confiante e regido pelo princípio da razão suficiente, encontra-se a geometria - personagem central das telas de Claudio Tozzi. Linhas ortogonais, degraus e escadas, torres e faróis estão, não obstante, desvestidos da função de orientar o homem, não lhe indicam a boa direção. Geometria, aqui, não é a do espaço e tempo, Céu e Terra, tudo vacila num limiar. Instante de hesitação, os quadros não nos sugerem habitá-los, um passo permanece em suspenso, indeciso quanto a seus resultados. Claudio reflete sobre o tempo, partindo das cidades. Se Alphaville de Godard, Blade Runner de Ridley Scoth, O Mundo desde o Fim de Paul Auster apresentam-nas tão pouco confortáveis é por não serem tocadas por qualquer passado. Claudio Tozzi, ao contrário, faz pensar no espaço aporético de Zenão de Eléia: Aquiles, a passos largos não ultrapassa a tartaruga, permanecendo imóvel: a flecha veloz, paralisada em cada instante de sua trajetória - é flecha que não voa. Espaço e tempo, no enigma da divisão do infinito, fixam o mundo no primeiro dia da criação. Os trabalhos de Claudio nos convidam a interrogar a condição do homem moderno, indicando sua migração metafísica, por degraus não-cartesianos. Obra inaugural da modernidade, o Discurso do Método. Com a metáfora da escada, Descartes constrói as primeiras regras para desenvolver o conhecimento: 'começar sempre pelas coisas mais simples e fáceis de conhecer para, aos poucos, elevar-se, como que por degraus, ao conhecimento das mais complexas'. Sem recurso a regras tranquilizadoras, o universo criado por Claudio é mais um decurso que um curso- é um anti-método uma vez que, diversamente da linha reta da geometria cartesiana, os quadros não apontam um caminho mas antes deriva e desvios. Por isto, em certas telas, vemos as voltas de parafusos metamorfoseando-se em degraus, degraus em torres ou faróis, em total desequilíbrio. Anti-método transita para anti-heróis. Nos quadros, a multidão é tão homogênea quanto cinzenta, com rostos e vidas 'insignificantes'. Existências anônimas, nos diz Foucault, elas 'só se manifestam tropeçando com o poder, debatendo-se com ele, trocando palavras breves e estridentes', antes de regressarem à noite (...). Infâmia de homens simples e obscuros que devem apenas a queixas, a relatórios policiais serem trazidos à luz por um instante''.
Olgária Matos
TOZZI, Claudio. Geometrias do tempo. Apresentação Olgária Matos. São Paulo: Galeria de Arte São Paulo, 1998. s. p.