Introdução
Registro, documentação ou necessidade de expressão, sacra ou profana, o fato é que a incisão ou gravado sobre superfícies rijas está presente desde que se conhece a história do homem. É de se supor que o esforço de apropriação e revelação de seu universo, milhares de anos antes da invenção do papel e da imprensa, tenha levado o homem a uma forma de registro. Possivelmente esta intenção aliada ao gesto de gravar impregnou de características específicas aquilo que iria estruturar uma "linguagem" bem distinta da do desenho, da pintura, da escultura, da fotografia e do cinema.
A troca, a comunicação e a divulgação no momento em que o homem se organiza socialmente, e especificamente com o advento dos primeiros núcleos urbanos, criaram a necessidade de encontrar um meio de multiplicação não só de texto como também de imagens. As implicações culturais e sociais que daí advieram são indiscutíveis.
A multiplicação de um original - a partir de uma matriz geradora veio romper a tradição valorativa da peça única, provocando uma renovação que iria afetar, inclusive o conceito e as avaliações estéticas. O valor de uma obra que aumenta ou diminui pelo fato de estar limitada a um possuidor privilegiado é quando muito, posta em questão. Esse valor na obra de multiplicação aumenta na medida do seu desdobramento, uma vez que patrocina a possibilidade de um convívio sem barreiras geográficas, sociais e culturais, com imagens, conceitos permanentemente transformadores da realidade. Assim a gravura vem expressar os anseios dos homens, sociais e culturalmente distanciados e diferenciados, consignados deste modo o seu alto sentido democrático.
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Alfredo Volpi
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Alfredo Volpi (Lucca Itália 1896 - São Paulo SP 1988). Pintor. Muda-se com os pais para São Paulo em 1897 e, ainda criança, estuda na Escola Profissional Masculina do Brás. Mais tarde trabalha como marceneiro, entalhador e encadernador. Em 1911, torna-se pintor decorador e começa a pintar sobre madeiras e telas. Na década de 1930 passa a fazer parte do Grupo Santa Helena com vários artistas, como Mário Zanini e Francisco Rebolo, entre outros. Em 1936, participa da formação do Sindicato dos Artistas Plásticos de São Paulo e integra, em 1937, a Família Artística Paulista - FAP. Sua produção inicial é figurativa, destacando-se marinhas executadas em Itanhaém, São Paulo. No fim dos anos de 1930, mantém contato com o pintor Emídio de Souza. Em 1940, ganha o concurso promovido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN, com trabalhos realizados com base nos monumentos das cidades de São Miguel e Embu e encanta-se com a arte colonial, voltando-se para temas populares e religiosos. Realiza trabalhos para a Osirarte, empresa de azulejaria criada em 1940, por Rossi Osir. Sua primeira exposição individual ocorre em São Paulo, na Galeria Itá, em 1944. Em 1950, viaja para a Europa acompanhado de Rossi Osir e Mario Zanini, quando impressiona-se com obras pré-renascentistas. Passa a executar, a partir da década de 1950, composições que gradativamente caminham para a abstração. É convidado a participar, em 1956 e 1957, das Exposições Nacionais de Arte Concreta e mantém contato com artistas e poetas do grupo concreto. Recebe, em 1953, o prêmio de Melhor Pintor Nacional da Bienal Internacional de São Paulo, dividido com Di Cavalcanti- em 1958, o Prêmio Guggenheim- em 1962 e 1966, o de melhor pintor brasileiro pela crítica de arte do Rio de Janeiro, entre outros.
Comentário crítico
Alfredo Volpi, filho de imigrantes italianos, chega ao Brasil com pouco mais de um ano de idade e instala-se com a família no Cambuci, tradicional bairro de São Paulo. Ainda criança, estuda na Escola Profissional Masculina do Brás e trabalha como marceneiro, entalhador e encadernador. Em 1911, aos 16 anos, inicia a carreira como aprendiz de decorador de parede, pintando frisos, florões e painéis de residências. Na mesma época, começa a pintar sobre madeira e telas. Volpi freqüenta mostras no centro antigo de São Paulo, entre elas a polêmica exposição de pintura moderna Anita Malfatti, de 1917, que se tornaria um marco do modernismo no Brasil. Sua primeira exposição coletiva ocorre no Palácio das Indústrias de São Paulo, em 1925. Privilegia no período retratos e paisagens. Possui grande sensibilidade para a luz e sutileza no uso das cores, por isso é comparado aos impressionistas. No entanto, algumas obras da década de 1920, como Paisagem com Carro de Boi, pertencente à Pinacoteca do Estado de São Paulo - Pesp, pela movimentação curva da estrada e a árvore retorcida, remetem a composições românticas, o que indica conhecimento da tradição e sua recusa à pintura de observação. Em 1926, assiste em São Paulo à conferência do teórico do futurismo italiano Filippo Tommaso Marinetti (1876 - 1944).
Em meados dos anos 1930 se aproxima do Grupo Santa Helena. Formado por Francisco Rebolo, Mário Zanini, Fulvio Pennacchi e Bonadei, entre outros, é assim denominado pelo crítico Sérgio Milliet porque alugam salas para escritórios de pintura e decoração no edifício Santa Helena, na Praça da Sé. Volpi não chega a se instalar no local, mas participa de excursões para pintar os subúrbios e de sessões de desenho com modelo vivo junto ao grupo. Em 1936, toma parte na formação do Sindicato dos Artistas Plásticos de São Paulo. Nesse ano, expõe com o Grupo Santa Helena. Em 1937, conhece o pintor Ernesto de Fiori, recém chegado da Itália, importante no desenvolvimento de sua pintura. Com De Fiori aprende que o assunto da pintura e suas possibilidades narrativas não são tão importantes quanto seus elementos plásticos e formais. Certas soluções, como o uso de cores vivas e foscas e um tratamento mais intenso da matéria pictórica, surgem de diálogos com o artista ítalo-alemão. A partir de 1937, participa dos Salões da Família Artística Paulista - FAP, organizado por Rossi Osir, pintor que reúne um grupo heterogêneo de artistas e intelectuais para conversar sobre arte. Sem abandonar o trabalho de decoração de paredes, em 1939 inicia a série de marinhas e paisagens urbanas realizadas em Itanhaém, litoral de São Paulo. Nessa época conhece o pintor naïf Emídio de Souza, de quem adquire algumas telas. No início da década de 1940, seu trabalho passa por uma rigorosa simplificação formal, mas a perspectiva sugerida no quadro não chega a representar a recusa da planaridade da tela.
Casa-se com Benedita da Conceição (Judith) em 1942. Em 1944, realiza a primeira exposição individual, na Galeria Itá, em São Paulo, e participa de coletiva organizada porGuignard, em Belo Horizonte, ocasião em que visita Ouro Preto. A têmpera, na passagem da década de 1940 para os anos 1950, confere à sua pintura uma textura rala, como emCasa na Praia (Itanhaém), pertencente ao Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo - MAC/USP. Nesse período, o caráter construtivo de sua pintura se afirma entre os planos das fachadas, telhados e paisagem. Em 1950, viaja para a Europa com Zanini e Rossi Osir. Passa por Paris, se instala em Veneza e faz visitas a Pádua para ver o afresco de Giotto (ca.1266 - 1337) na capela dos Scrovegni. Seu interesse por pintores pré-renascentistas confirma algumas soluções pictóricas que havia alcançado em seu trabalho. Encontra na obra de Paolo Uccello (1397 - 1475) jogos de ilusão em que ora o fundo se opõe à figura e a projeta para a frente, ora ambos se entrelaçam na superfície da tela. Volpi constrói assim um espaço indeterminado que permite o surgimento de uma estrutura que se esvai, fluida, ressaltada pela têmpera, e uma forte vontade de ordenação.
Participa das três primeiras Bienais Internacionais de São Paulo e, em 1953, divide com Di Cavalcanti, o prêmio de Melhor Pintor Nacional. Da série das fachadas surgem as bandeirinhas de festa junina, que, mais que um motivo popular, se tornam elementos compositivos autônomos. Participa, em 1957, da 1ª Exposição Nacional de Arte Concreta, mas nunca se prende ao rigor formal do movimento. No Rio de Janeiro, realiza retrospectiva em que é aclamado por Mário Pedrosa como 'o mestre brasileiro de sua época', em 1958. No mesmo ano, pinta afrescos para a Capela da Nossa Senhora de Fátima, em Brasília, e telas com temas religiosos. Nos anos 1960 e 1970 suas composições de bandeirinhas são intercaladas por mastros com grande variação de cores e ritmo. A técnica da têmpera lhe permite renunciar à impessoalidade do uso de tintas industriais e do trabalho automatizado e mecânico, do qual os artistas concretistas se aproximam. A prática artesanal torna-se para Volpi, uma resistência à automatização e, simultaneamente, afirmação de seu lirismo ao invés de reiteração ingênua do gesto. A trajetória original e isolada de Volpi vai dos anos 1910 até meados dos anos 1980. Todas as suas transformações são gradativas e brotam de seu amadurecimento e diálogo com a pintura.
Nascimento/Morte
1896 - Lucca (Itália) - 14 de abril
1988 - São Paulo SP - 28 de maio
Formação
Autodidata. Volpi jamais admitiu a influência de pintores ou movimentos sobre sua arte, mas alguns críticos apontam referências do pintor italiano Ernesto de Fiori (1884 - 1945)em obras do fim da década de 1930 e início da década de 1940
Cronologia
Pintor
Críticas
'Volpi pinta vôlpis.
(...) atualmente, os vôlpis das 'casas', das 'bandeiras', das 'fachadas', das 'composições', são sempre o resultado que volpi encontra ao usufruir, contemporaneamente, de sua experiência dentro do figurativo, do abstrato ou do concreto. eis porque volpi pinta como volpi, enfrentando a prestidigitação do gosto, com aquilo que ele argutamente sabe e acha, que deve pintar.
é, pois, facilmente, que descobrimos que cada quadro seu evidencia uma realidade, dimensionada em um tempo sem começo e sem fim, onde cada qual faz brotar de si constantes informações de relatos, racionalmente sem valor.(...)'.
Willys de Castro
[texto escrito originalmente em 1960, para o catálogo da exposição individual de Alfredo Volpi realizada na Galeria São Luís, em São Paulo]
VOLPI, Alfredo. A. Volpi: pinturas 1914-1972. Rio de Janeiro: MAM, 1972. p. 39.
'Nos primeiros anos da década de 40, as vistas e marinhas de Itanhaém mergulham numa atmosfera ligeiramente irreal, que evoca algo da ´pintura metafísica´ - embora não se pareça em nada com ela - e é obtida através do colorido severo e da economia de imagens voluntárias: em nenhuma obra sobrevive qualquer elemento acessório. (...) (. . . ) No final da década de 40 para frente, a realidade já não surge sequer como estímulo, mas apenas como um repositório de imagens, um repertório iconográfico do qual Volpi retira formas avulsas existentes - portas, janelas, telhados, ruas, pátios, barcos, gradis, linhas do mar ou do horizonte - como se fossem signos abstratos. (...) Daí em diante, começa a série de fachadas- e com elas se abre a porta à pura abstração geométrica. (...) As condições para que ele (Volpi) cumpra seu papel de mestre consumado, e ascenda à ímpar posição que hoje ocupa, só se reúnem após 55. Data do pós-concretismo o Volpi definitivo, aquele que conseguiu fazer o que muito poucos outros fizeram, o que pode competir no plano internacional da inventividade e qualidade. (...)'.
Olívio Tavares de Araújo
ARAÚJO, Olívio Tavares. Volpi: a construção da catedral. In: _______. VOLPI: a construção da catedral. São Paulo: MAM, 1981. p. 14-15,19.
'Alfredo Volpi foi um homem quase iletrado, mas um pintor de grande cultura visual. As particulariedades da história cultural do Brasil o levaram a percorrer um caminho que na Europa demandaria várias gerações, da pintura romântica até a crise do modernismo. Num país caracterizado por explosões artísticas de curta duração, produziu por quase setenta anos uma pintura de qualidade elevada - por trinta anos, pelo menos, uma grande pintura. Sua arte nunca deu saltos: evoluiu por modificações e incorporações graduais, que permitiram reduzir a uma linguagem original um leque bastante considerável de influências. Nunca viajou, a não ser por um breve período em 1950, mas dispôs de uma sensibilidade muito aguda para aproveitar o que estava à mão - e o que estava à mão, afinal, não era tão pouco. Não foi um pintor de sistema, e sim de método: manipulou informações díspares, que podiam ir dos macchiaioli a Albers, até encaixá-las em sua arte. Foi nessa digestão lenta, mais do que na indigestão antropofágica, que veio à tona um modelo convincente de arte moderna brasileira. O modernismo de Volpi é um modernismo da memória, afetivo e artesanal, de marcha lenta e voz mansa. Não se projeta no futuro, nem pode dar conta dos cliques instantâneos e sem contornos da vida contemporânea. Permanece no entanto, como um horizonte e uma promessa - como os poemas de Bandeira e as canções de Caymmi'.
Lorenzo Mammí
MAMMÍ, Lorenzo. Volpi. In: VOLPI. São Paulo: Cosac & Naify, 1999. p. 39.
'Quando, no princípio da década de 1950, surgiram as primeiras pinturas de Volpi projetadas num espaço plenamente bidimensional, não se tratava, então, de uma guinada ou de uma ruptura moderna na trajetória do velho artista. Sabemos que desde a segunda metada da década de 40, mesmo antes do advento pleno daquele espaço bidimensional, Volpi vinha lidando com a noção de superfície de uma posição quase solitária no meio de arte brasileira. O campo da representação se revelava então reduzido a um repertório de elementos constantes, cuja função narrativa o pintor pacientemente limava, até que no abrir da década de 1950 eles viessem á tona em um jogo de elementos formais móveis e permutáveis, embora nesse processo jamais se perdesse a referência afetiva do subúrbio e não houvesse dúvida de que ali se tratava de uma retratada memória familiar de fachadas e janelas. A cor já havia aflorado como elemento autônomo, estrutural- era como se Volpi, depois de quase três décadas de recato intimista e comedimento cromático na arte brasileira, reabrisse um capítulo engasgado na pintura nacional, retomando os planos francos e radiantes que haviam aturdido e precocemente embotado a obra de Tarsila, e a noção de uma superfície contínua, que irradiava para a vida na cidade'.
Sônia Salzstein
SALZSTEIN, Sônia. Moderno subúrbio. In: ______. Volpi. Rio de Janeiro: Campos Gerais, 2000. p. 38.